“Zerei a vida” (Frase do apresentador Mateus Grecco). Foi assim que abrimos o episódio do Massa Madre Talks com Milhem Cortaz, um convidado que transita com rara naturalidade entre dois palcos: o cinema e a padaria. Conhecido por atuações marcantes em Carandiru, Tropa de Elite e O Cheiro do Ralo, Milhem hoje também é padeiro e idealizador de um projeto social muito valoroso, que une técnica, trabalho e afeto em torno do pão.
Teatro como método, pão como linguagem
A trajetória de Milhem começa cedo fora do Brasil. Adolescente, ele desembarca na Itália, matricula-se em um curso livre de comédia dell’arte no Piccolo di Milano e logo é convidado a integrar uma companhia. Ali, descobre um princípio que atravessará sua vida: disciplina liberta. De volta ao Brasil, segue estudando — passa pelo Célia Helena e mergulha no rigor de Antunes Filho. A lição que traz desse período — ensaiar transições de cenário em silêncio por um mês, se for preciso — ressurge quando o assunto é panificação: “pão é disciplina, técnica, rotina”. Se o teatro ofereceu método para que a criatividade ganhasse forma, a padaria oferece método para que a sensibilidade se repita todos os dias.
O primeiro pão e a redescoberta na pandemia
A pandemia foi o ponto de inflexão. Entre pausas e incertezas, Milhem encontra um novo cotidiano no litoral, ao lado da família, e se vê inquieto: “o que eu vou fazer depois dos 50?”. Surge o primeiro pão (ele guarda a data com carinho, abril de 2020) inspirado por um livro francês clássico. O resultado comove; a companheira provoca: “vamos abrir uma padoquinha?”. Ele compra um forno (que demora um ano para chegar), ganha uma maceira de 12 kg, estuda de forma autodidata, pergunta em fóruns, troca com padeiros e faz dois movimentos em paralelo: produz volume — seis, sete, oito pães por fornada — e doa.
Essa escola prática é temperada por mestres e referências. Milhem cita a generosidade do Beto (Pão Puro), a precisão do Alex (RJ), e parcerias com Papola e Flávio Federico. Entre o controle total de variáveis e o improviso de quem quer “tirar pão de qualquer lugar”, ele encontra o próprio meio-termo: suficiente controle para repetir qualidade; abertura para adaptar e aprender.
Histórias de bancada: hotel, seleção e um “parabéns, Tite”
O pão leva Milhem a cozinhas improváveis. Em uma temporada no Hilton, no Rio, começa com uma bancada improvisada (fermentação no frigobar, ajustes de última hora) até descobrir uma padaria desativada. Organiza o espaço, ensina a equipe, monta uma bancada de fermentação natural e passa a assar para o café da manhã. Em períodos de hospedagem de times de futebol, a rotina vira notícia de corredor: quando a Seleção Brasileira está lá, “só comiam meus pães”. Teve chef pedindo repeteco e até cumprimentos do Tite. Histórias assim ilustram um traço do convidado: ousadia respeitosa — pedir licença, aprender com quem sabe e, se der, deixar o lugar um pouco melhor do que encontrou.
“Pão bom para todo mundo”: escola-padaria no Bixiga
Do gesto de doar nasce um projeto com espinha dorsal empresarial e coração assistencial: Pão bom para todo mundo. A sede será no Bixiga (Bela Vista, SP), em parceria com entidades sociais do bairro. A proposta tem dois braços:
- Formação & Emprego
Uma escola-padaria que, a partir de turmas iniciais de 10 alunos por 45 dias, formará padeiros e pizzaiolos com bolsa/remuneração durante o treinamento, suporte social e psicológico, e encaminhamento ao mercado. A meta é mapear padarias da cidade para empregar e ressocializar — com foco inicial em egressos do sistema prisional e outros grupos historicamente marginalizados. Parte dos formados poderá integrar a própria operação do instituto; os destaques terão apoio para abrir micropadarias nas suas comunidades, com suporte de gestão e retorno de 10% para sustentar o ciclo.
- Assistência & Produção
O que se produz durante a formação vira doação. A meta é 2.000 pães/dia no bairro, articulando uma rede solidária ágil (porque a fome tem pressa). Tudo isso com time contratado e qualificado, evitando a intermitência típica de ações voluntárias e garantindo padrão e continuidade.
O projeto já reúne marcas concorrentes trabalhando lado a lado, prova de que propósito bem formulado conecta ecossistemas. Há um investidor-mentor que banca a largada (estrutura, folha, jurídico, contábil, marketing) para que o instituto nasça sólido. E há uma comunidade de padeiros, confeiteiros e pizzaiolos pronta para dar aula, orientar e abrir portas. Do nosso lado, no Massa Madre, com apoio da Ramalhos, seguimos ajudando a pensar grande e a transformar intenção em processo.
Popularidade com propósito
Aos 52 anos, depois de papéis intensos que o colocaram no panteão do cinema nacional, Milhem escolhe outra régua: ser mais popular para ampliar o impacto. Menos sobre provar algo como ator; mais sobre conectar pessoas, ofícios e oportunidades. Ele se define como conector — e a verdade é que também impulsiona: uma conversa puxa um parceiro, que puxa outro, até que a rede se torna capaz de mudar trajetórias de vida.
No fim do episódio, ele deixa duas máximas que o guiam — uma do mestre de capoeira, outra da mãe:
“Quem corre cansa; quem anda, alcança.”
“O vencedor do século XXI é aquele que tem a humildade de saber pedir.”
Entre disciplina e sensibilidade, Milhem Cortaz mostra que pão é ciência, sim — e também encontro, memória e recomeço. Que a técnica organiza, mas é o cuidado que dá sentido. E que um forno pode ser ferramenta de dignidade quando a sociedade inteira é convidada a participar.
Assista ao episódio completo do Massa Madre Talks no Youtube ou Spotify e compartilhe com quem acredita que trabalho bem-feito, educação e afeto podem mudar destinos.